26/04/10

O RESPEITO À CRIANÇA


O respeito à criança
O que pensar então dessa educação bárbara que sacrifica o presente a um futuro incerto, que cumula a criança de cadeias de toda espécie e começa por torná-la miserável a fim de preparar-lhe, ao longe, não sei que pretensa felicidade de que provavelmente não gozará nunca? Ainda que supusesse essa educação razoável em seu objetivo, como ver sem indignação pobres desgraçados condenados a trabalhos contínuos, forçados, sem ter certeza de que tantos cuidados lhes serão úteis algum dia! A idade da alegria passa em meio a choros, castigos, ameaças,escravidão. Atormenta-se o infeliz para seu bem; e não se vê a morte que se chama e que vai alcançá-lo em meio a essas tristes precauções. Quem sabe quantas crianças morrem vítimas da extravagante sabedoria de um pai ou de um mestre? Felizes por escaparem à crueldade destes, a única vantagem que tiram dos males a elas impostos é a de morrerem sem saudade da vida, da qual só conheceram os tormentos.
Homens, sejais humanos, é vosso primeiro dever: e o sejais em relação a todas as situações sociais, a todas as idades, a tudo o que não seja estranho ao homem. Que sabedoria haverá para nós fora da humanidade? Amai a infância: favorecei seus jogos, seus prazeres, seu amável instinto. Quem de vós não se sentiu saudoso, às vezes, dessa idade em que o riso está sempre nos lábios e a alma sempre em paz? Por que arrancar desses pequenos inocentes o gozo de um tempo tão curto que lhes escapa, de um bem tão precioso de que não podem abusar? Por que encher de amarguras e de dores esses primeiros anos tão rápidos, que não voltarão nem para vós nem para eles? Pais
sabeis a que momento a morte espera vossos filhos? Não vos prepareis desgostos suprimindo-lhes os poucos instantes que a natureza lhes dá; desde o momento em que possam sentir o prazer de serem, fazei com que dele gozem; fazei com que, a qualquer hora que Deus os chame, não morram sem ter gozado a vida.
Quantas vozes se vão erguer contra mim! Ouço de longe os clamores dessa falsa sabedoria que nos bota incessantemente fora de nós, menospreza sempre e que, visando sempre a um futuro que de nós se afasta na medida em que avançamos, à força de nos transportar para onde não estamos, nos transporta para onde nunca estaremos.
É, responder-nos-eis, o momento de corrigir as más inclinações de homem: é na infância, quando as penas são menos sensíveis, que é preciso multiplicá-las, a fim de poupá-las na idade da razão. Mas quem vos diz que todo esse arranjo está à vossa disposição e que todas essas belas instruções com que encheis o fraco espírito de uma criança, não lhe serão um dia mais perniciosas do que úteis? Quem vos assegura que lhes poupais alguma coisa com as amarguras que lhes prodigalizais? Por que lhes dais maiores dissabores do que comporta seu estado, sem terdes a certeza de que esses males presentes aliviarão o futuro? E como me provareis que essas más tendências de que a pretendeis curar não lhes vêm de cuidados mal entendidos, muito mais que da natureza? Infeliz providência que faz um ser desgraçado no momento, na esperança de torná-lo feliz um dia! Se tais raciocinadores vulgares confundem a licença com a liberdade, e a criança que fazemos feliz com a criança que estragamos, ensinemo-los a distingui-los.
Para não correr atrás de quimeras, não esqueçamos o que convém à nossa condição. A humanidade tem seu lugar na ordem das coisas; a infância tem o seu na ordem da vida humana; é preciso considerar o homem no homem e a criança na criança. Assinalar a cada um seu lugar e nele fixá-lo, ordenar as paixões humanas segundo a constituição do homem é tudo o que podemos fazer para o seu bem-estar. O resto depende de causas estranhas a nós e que não estão em nosso poder.
ROUSSEAU, Jean-Jaques. Emílio ou da educação. São Paulo: Difel, 1968, pp. 60-62.